Deformaram-se os corpos, como puderam, num silêncio absorto, numa auto-escultura feita de bossas e fossas, mutilações e extensões, desvios e torções. Ousaram então caminhar, esses corpos, humanos e naturais, depois de feros. Por fim pontuaram-lhes alma em vibrações, sonoridades orgânicas.
Treparam por si mesmos a dentro, os bufões de santa maria, rindo entre si, escarnecendo dos demais, convocando por via de danças e cânticos endemoninhados, subtis, um coro, um magnífico coro de deformidades...
Os médicos largaram as urgências e lançaram-se no seu encalço. «Cubram esses seres abjectos!», gritavam, uns para os outros; «Deixem-nos falar!», pediam os doentes, erguendo-se das macas, «Queremos ouvi-los!», exigiam, reanimados pela intrépida febre dos bufões em desfile.
À sua passagem reverberava o caos; dançavam as macas, as máquinas e os suportes intravenosos, vomitavam-se os armários e as prateleiras, planavam as roupas de cama, desaparecia o jantar nos tabuleiros... Os seguranças cuspiam impotentes sobre os walkie-talkies, enquanto os doentes se despiam sem pudor e as enfermeiras cobriam o chão de gritinhos histéricos, forçadas sob os bufões que dos seus bolsos extorquiam milhares de canetas coloridas.
Surgiram, por fim, os cientistas. Vinham sorridentes, de braços no ar, semblante complacente, apaziguar o pânico, repor a tão amada ordem; e com extrema ternura anunciavam «Calma, calma, está tudo bem, isto é tudo uma experiência!»
E logo os médicos voltavam às urgências; as macas, as máquinas e os suportes intravenosos estacionavam nos velhos lugares, os armários e as prateleiras engoliam ordeiros o próprio vómito, as roupas alisavam-se sobre as camas, o jantar rastejava de volta aos tabuleiros; os seguranças repousavam os walkie-talkies, os doentes vestiam-se de novo pálidos, as enfermeiras contavam as canetas em risinhos nervosos...
E os bufões de santa maria recuavam cabisbaixos até junto dos cientistas, num murmúreo salivar que lentamente os expremia entre bossas e fossas, mutilações e extensões, desvios e torções; até que estes, por fim, os acarinhassem...
(Rita Fouto)
Nisto de arrastarem as pernas mancas, bossas e outras deformidades os bufões têm algo de semelhante a alguns cientistas que, literalmente, se arrastam pela lama...
(Paulo Cartaxana)